Num primeiro momento é até difícil de encontrar… Quem não foi orientado previamente não imagina que ao lado da rodovia ERS 342, à direita de quem se desloca de Ijuí a Catuípe, pouco antes do viaduto do trilho de trem, existe uma atividade altamente produtiva. Apenas um olhar mais atento identifica uma pequena entrada encoberta pela vegetação nativa e exótica, plantada paralelamente à estrada. Um portão solitário denuncia que ali há uma moradia. Mas se engana também quem acha que após transpor essa primeira barreira visual, vai enxergar uma ampla lavoura, cultivada com algum tipo de commoditie, com plantas perfeitamente alinhadas de acordo com a determinação da máquina plantadeira. O verde segue sim predominando, mesmo agora, em janeiro de 2022, no auge de uma das piores estiagens já registradas no Rio Grande do Sul, mas de uma forma menos linear. O leitor deve estar se perguntando do que se trata, afinal? Simples, de videiras cultivadas de forma sustentável, que produzem uvas legitimamente orgânicas, como comprova o selo emitido pelo Ministério da Agricultura, através da empresa certificadora Ecocert.
Foi lá que, no dia 20, se reuniu um grupo de representantes da Associação de Proteção ao Ambiente Natural de Ijuí – AIPAN, que foram até o local para conhecer o processo produtivo, degustar algumas das 22 variedades de uva de mesa e viníferas que ali existem, e caso gostassem, claro, levar alguns cachos para casa. Avaliando pelas sacolas ecológicas lotadas de uvas ao final da visitação não restaram dúvidas de que, além do sistema de produção ser um diferencial, o sabor das uvas não deixava a desejar. A responsável por aquelas delícias é a agricultora Mágida Kasctin, que cuida da propriedade diariamente, com o apoio sempre que possível de seu esposo, Nilton Kasctin. Da propriedade de onze hectares, uma é utilizada para a produção de uvas. O restante se divide entre outras frutíferas e áreas de preservação permanentes, formadas por vegetação nativa que, aliás, cerca os dois açudes da propriedade cuja água é utilizada no sistema de irrigação por aspersão tipo bailarina (que joga a água para o solo não molhando as folhas) implantado nos parreirais. Nilton lembra que o reservatório de água sequer existia quando a área foi adquirida em 2001. Aliás, segundo ele, na propriedade não havia água disponível. Após abrir os açudes estes demoraram dois anos para encher, mas hoje, mesmo na estiagem, tem água em abundância para toda a subsistência da propriedade. O segredo: justamente as árvores nativas que cercam todo o manancial d’água e protegem as nascentes. Além da irrigação essa água sustenta animais, especialmente seus amigos cães e algumas vacas, além da vida silvestre, que vive tranquilamente no local. Por isso, o alerta constante dos proprietários: “Cuidado com a cobra urutu que vive por aqui. Ah, tem marimbondos também ali na parreira!!!!”. Toda essa biodiversidade faz parte do sistema de produção. Cada uma das espécies tem seu papel, que vai do controle de pragas à polinização das plantas. O que para muitos seria erva daninha, para os proprietários são atrativos para abelhas e outros insetos importantes para o ecossistema. A atenção com as cobras não é exagero, afinal, o solo, diferente das culturas convencionais, não é “limpo”, mas totalmente encoberto pela vegetação. Não se usa arado. Capina química, nem pensar! Lembram, a propriedade tem certificação como orgânica. Não, não é um matagal sem controle, como alguns já podem imaginar. Capinas pontuais são feitas assim como roçadas entre linhas para o manejo do “inço”, preservando aquelas plantas que tem potencial para atrair polinizadores ou contribuem para outra finalidade qualquer.
No final das contas, praticamente todas as espécies ali existentes tem alguma finalidade, nem que seja para cobertura perene. “As plantas, teoricamente invasoras, aqui são atrativos para espécies úteis, desde polinizadores, até espécies que trabalham na decomposição da matéria orgânica, que fortalece o solo”, explica a proprietária Mágida. “São o habitat de todo o tipo de biodiversidade que vai interagir com as uvas” salienta ela.
E as pragas e doenças, como se controla sem o uso de agrotóxicos? Essa é outra grande pergunta e que inibe muitas pessoas a implantarem as atividades orgânicas. Mais uma resposta simples, como simples é a produção orgânica. Com o uso de produtos naturais, entre eles, o leite das vaquinhas Mimosas criadas no “potreirinho” ao lado do parreiral. Também se utilizam de cinzas, linhaça e a famosa calda bordalesa, entre outros fitoterápicos caseiros. São usados para controle de doenças como antracnose, oídio e míldio. “Utilizamos exclusivamente tratamentos orgânicos, autorizados pelo Ministério da Agricultura e pela empresa certificadora”, explica Mágida. Enfim, é um ecossistema quase autossuficiente. Lembram da tal da biodiversidade? Pois é, ela também ajuda nisso. Passarinhos e insetos tem livre acesso às parreiras. Claro, comem algumas uvas, até porque não são bobos, mas nada que comprometa a subsistência dos seres humanos. Já os insetos malfeitores, estes sim ficam em apuros. Ah, e o agrotóxico que vem pelo ar, das propriedades vizinhas, questionará o leitor mais cético. Lembra da vegetação ao lado da rodovia que impede que o parreiral seja visto? Pois bem, essas árvores que cercam toda a propriedade recebem o termo técnico de Quebra Vento e na prática impedem que produtos estranhos cheguem pelo ar.
Além das aves, insetos, e outros animais, como cobras e marimbondos, qualquer pessoa pode agendar uma visita à propriedade para conhecer e fazer a aquisição de cachos de uvas, assim como fez a comitiva da AIPAN. Organizados se deslocaram de Ijuí até a propriedade usando de carona solidária, não apenas para comprar as frutas, mas para vivenciar e tirar muito aprendizado da experiência, como afirma Francesca Werner Ferreira, presidente da AIPAN. “Faz alguns anos que nós da AIPAN repetimos essa visita, não só para degustar e comprar as uvas orgânicas certificadas, mas também para aprender, conversar e compartilhar memórias. Este oásis, em meio a tanta terra degradada mostra a possibilidade de uma outra via para a produção de alimentos com preservação ambiental, que utiliza ciência e conhecimento para a restauração, mas sobretudo, tem sensibilidade para entender os mecanismos da natureza e convive de forma mais harmônica com as outras vidas que habitam este planeta”, afirma ela. Comprar uvas é uma consequência, pois não há como sair de lá sem uvas, depois de conhecer o seu sabor. Contudo, se preferirem, Mágida entrega em casa. Ela está à disposição pelo número de telefone (55) 99182-8309. O preço é de ocasião, R$10,00, menos que muitas uvas convencionais vendidas nos supermercados. Como isso é possível? Segundo Mágida, graças ao custo de produção que é menor, afinal, não há aquisição de insumos químicos e agrotóxicos e a mão de obra é mais barata, afinal, ela toca a atividade praticamente sozinha. Já a qualidade, o sabor, esses sim, muito superiores.
Ao final, não foram vistas cobras nem marimbondos, apenas uvas deliciosas. Até fazer a reportagem foi um desafio devido a essa satisfação em degustá-las. Entre uma foto e outra, tínhamos que largar a câmera fotográfica para comer um cachinho aqui, outro ali. Já o bloquinho de notas acabou tingido pela cor mais vivida da uva fresca. “Come mais uma, só mais uma”, dizia Nilton. “E a reportagem? ”, questionei. “Ah, tem tempo depois”, dizia ele. Uma das matérias mais doces que já fiz.
Jornalista: Vilson Wagner
AGUATONICA – Informação Estratégica